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quinta-feira, 23 de junho de 2011

Pense Nisso...Os novos índios

por Jomar Morais

No coração da selva do Xingu, o conflito de gerações altera costumes, põe em xeque a estrutura tribal e enche de incertezas o futuro da cultura indígena



JM na aldeia iaualapiti

Quando a porta do bimotor Navajo foi aberta, uma pequena multidão cercou o avião e, do meio do grupo, uma voz inquiriu o primeiro passageiro a descer: – Trouxe mini-pizza? Trouxe chocolate? – perguntou o índio Cocoró, da tribo dos iaualapitis. É sempre assim toda vez que um avião trazendo gente da cidade pousa em alguma pista de terra batida do Parque Indígena do Xingu, uma área de 28 mil quilômetros quadrados, do tamanho da Bélgica, situada no norte do Mato Grosso. Dessa vez, no entanto, não havia pizza nem doces a distribuir.– Trouxe óculos – respondeu o oftalmologista Rubens Belfort Júnior, diretor do Instituto da Visão da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que realiza ações preventivas e terapêuticas no parque.Acostumado a freqüentar a área desde a década de 60, Rubens chegou acompanhado por um grupo de oftalmologistas, empresários e representantes de instituições brasileiras e americanas que apóiam as iniciativas do Instituto, e logo deu início ao trabalho. Sob o calor de quase 40 graus, os médicos avaliavam a acuidade visual dos nativos, servindo-se de instrumental simples como lupas e cartões de leitura, enquanto o empresário Álvaro Ferrioli, do Centro Ótico Miguel Giannini, de São Paulo, esvaziava uma mala repleta de óculos corretivos para a alegria de índios com dificuldade para enxergar pequenos objetos, trabalhar com artesanato e, sobretudo, acertar tucunarés e robalos com flechadas certeiras durante as pescarias, principal fonte de proteínas nas aldeias.



Ayumã, Canawayuri e Matariná: parabólica e rap




A equipe permaneceu na selva por dois dias e, mais do que complicações visuais, constatou sinais de uma agitada transição na cultura indígena, talvez a mais profunda de que se tem notícia desde que os índios brasileiros foram abordados pelos portugueses no século 16. Aliás, uma mudança que abala os próprios fundamentos conservacionistas do Parque do Xingu, idéia de antigos sertanistas liderados pelos irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Boas, concretizada em 1961 pelo presidente Jânio Quadros.

O Xingu já foi palco de combates sangrentos contra invasores que tentavam (e ainda tentam) ampliar sobre o quadrilátero de mata cerrada da reserva a devastação realizada por madeireiras, mineradoras e fazendas de soja e gado no seu entorno. Aqui também, vez ou outra, agentes da Fundação Nacional do Índio (Funai) enfrentam apuros quando índigenas decidem reagir com truculência ao que supõem ser um desrespeito aos seus direitos. Nos últimos tempos, porém, a maior preocupação de caciques e pajés não é mais a ambição do homem branco ou o descaso do governo, mas uma questão doméstica que está alterando radicalmente o panorama xinguano: a nova geração de índios, alfabetizada e razoavelmente informada, que sonha com uma vida diferente da de seus ancestrais.

Kuarup X rock

O caráter explosivo dessa questão foi testemunhado pela Super, no segundo dia da missão médica, por ocasião de um encontro de líderes de 14 etnias indígenas. A reunião, convocada por Douglas Rodrigues, médico sanitarista que coordena os serviços de saúde prestados pela Unifesp há quase 40 anos e mora na reserva, tinha por objetivo discutir assuntos como a melhoria dos serviços e a escassez de verbas, mas a agenda acabou sendo descartada no calor das emoções e das diferenças entre caciques, pajés e os jovens índios. No auge do bate-boca, o cacique Ayupu, dos camaiurás, acusou os garotos que hoje exercem funções nos serviços de saúde e educação do parque, se vestem com roupas de grife e curtem rock e reggae. “Eles dizem na nossa cara que não sabemos nada, não mandamos nada”, afirmou o cacique. Foi rebatido por Pablo Ayumã, camaiurá que atua como auxiliar de enfermagem e é um dos líderes da força jovem do Xingu, com uma crítica mordaz ao estilo das lideranças. “Nossos pais precisam aprender a nos respeitar e a usar melhor os recursos da comunidade”, disse Ayumã, causando tumulto na platéia. Muitos desses novos índios viraram funcionários do governo, formando uma casta de assalariados com ambições de consumo que agora ensaiam os primeiros passos na direção do poder tribal. E é justo aí, nesse ponto nevrálgico, que o conflito de gerações extrapola a intimidade das malocas.

Nem era preciso que adultos e jovens mergulhassem em discussão para que se pudesse perceber as divergências entre eles. Bastava olhar para aqueles homens, reunidos na beira do rio, sob um galpão sem paredes. Caciques e pajés compareceram seminus e descalços. Pelo menos um deles, o velho pajé Tacumã, marcaria posição apresentando-se em traje de gala indígena: nu, com o corpo tingido pelo vermelho do urucum e a cintura ornamentada com o kuarrap, um cinto de palhas coloridas. Contrastando com o naturalismo da cena, garotões como Pablo Ayumã, Marcelo Canawayuri e Maurício Matariná (eles fazem questão de seus prenomes brancos), exibiam-se em seus vistosos tênis, calças jeans e camisetas de marca. No brilho de seus olhos, vislumbrava-se um mundo ainda estranho e incompreensível para seus pais.

Segundo o cacique Aritana, dos iaualapitis, cuja saga na cidade grande inspirou a novela Aritana, que passou em 1978 na TV Tupi, todo esse descompasso é conseqüência da educação baseada em valores da civilização branca a que os meninos do Xingu foram submetidos. Tatap, o índio que traduz Tacumã, é ainda mais amargo: “Por causa disso, nossos jovens não querem mais pintar o corpo para festas como o Kuarup (a grande evocação dos antepassados). Dizem que preferem coisas limpas e muitos sonham em viver na cidade”. É como se, de repente, um movimento hippie ao avesso tivesse emergido no meio da floresta. Rituais como a reclusão pubertária das meninas e o pedido de permissão para casamento estão sendo atropelados por adolescentes índios com um ímpeto comparável aos dos jovens que nos anos 60 fizeram a revolução dos costumes na sociedade dos brancos. Em tribos com mais de 300 índios, segundo Tatap, a tradicional reunião de fim de tarde no centro da aldeia – um momento cerimonial que, ao longo de séculos, serviu para os mais velhos relatarem feitos heróicos e repassarem ensinamentos à juventude – agora não consegue atrair mais que 10 jovens.

O problema afeta não apenas a organização e o comando das tribos do Xingu, mas a própria sobrevivência de nações ameaçadas de extinção. Somando todas as etnias, estão instalados na reserva somente 4 175 índios. Algumas nações, como a dos trumáis, não têm mais que 90 membros, o que coloca em risco de extinção a língua, os hábitos e as crenças ancestrais do grupo. Mas, para os jovens, não há motivo para celeuma.




Na aldeia ykpeng





Não é verdade que desprezamos nossa cultura”, diz o ousado Canawayuri, auxiliar de enfermagem com pinta de rapper que adora o som do Jota Quest e dos Raimundos e cujo sonho de consumo é uma câmera digital. “É possível desfrutar das coisas modernas sem esquecer a tradição. Além disso, o que importa é saber usar a tecnologia para melhorar a vida na aldeia”, afirma. No plano político, o que garotos como Ayumã e Canawayuri desejam não difere em essência dos objetivos de outros milhões de jovens das cidades. Eles clamam por renovação de nomes, novas idéias e métodos mais transparentes na gestão de suas sociedades.

O choque de gerações é certamente o aspecto mais visível de um processo acelerado de mudanças impulsionado por dois fatores não mencionados na guerra verbal dos índios: a chegada da TV ao território das malocas e a multiplicação de cidades junto às fronteiras da reserva indígena. Em cada um dos postos de serviço do Xingu – Leonardo (onde meu avião pousou), Pavuru e Diauarum –, há um gerador elétrico, uma antena parabólica e pelo menos cinco televisores. Os aparelhos permanecem desligados durante o dia, devido ao racionamento de energia, mas à noite atraem principalmente uma platéia de jovens ávida para saber o que se passa no resto do mundo e curiosa ante o modo de viver dos “civilizados”, exposto em filmes e novelas. Quando vão às cidades vizinhas para comprar mantimentos, varando rios em barcos motorizados, muitos desses índios acabam cedendo ao impulso de provar bebidas, freqüentar boates e levar para a aldeia produtos que substituem hábitos do passado.

O contato com as cidades próximas trouxe para as aldeias o alcoolismo, a disseminação da gripe e até moléstias sexualmente transmissíveis”, diz o sanitarista Douglas. “A mudança no padrão alimentar gerou desnutrição e um leque de novas doenças”. Os brancos introduziram na selva o sal marinho (os índios usavam sal vegetal, extraído de raízes) e, com ele, a hipertensão. O açúcar e o macarrão, agora consumidos em larga escala nas aldeias, ajudaram a espalhar o diabetes. O tradicional beiju de mandioca, alimento básico junto com peixes e caças, progressivamente vai cedendo lugar ao arroz, bem menos nutritivo, o que dificulta o combate à tuberculose, doença cuja incidência é 50 vezes maior entre os índios que entre os demais brasileiros.

Isso é tudo o que Orlando Villas-Boas – o sertanista morto há um ano que é venerado em todo o Xingu – não queria. Orlando acreditava que os povos indígenas só sobreviveriam na sua própria cultura. Assim, caberia ao Estado organizar espaços como o Parque do Xingu, que servissem de proteção à estrutura social desses povos. Graças à habilidade dos irmãos Villas-Boas e à sabedoria das lideranças indígenas, foi possível, naquela época, costurar o entendimento entre diferentes etnias e retirá-las da rota de extermínio, reunindo-as no território seguro do parque. Nos últimos anos, a segurança aparente começou a ruir, com a explosão dos valores brancos no interior das ocas.

A situação atual era inevitável. O mundo mudou e não há mais como manter os índios numa redoma”, diz a médica sanitarista Sofia Mendonça, da Unifesp, que atua no Parque do Xingu há mais de 20 anos. “A história está acontecendo e eles fazem parte dela”. Muita gente concorda com Sofia, inclusive a Funai, executora da política indigenista do governo. Como qualquer sociedade humana, as dos índios passam por constantes mudanças e reelaboram a sua cultura com o passar do tempo, haja ou não contato com os civilizados. A questão é que o choque com a cultura dos brancos em situação desvantajosa, num ambiente de dominação política, econômica e religiosa, dizimou nações indígenas e deixou as sobreviventes em grande fragilidade. Estima-se que na época do descobrimento houvesse 10 milhões de índios no país. De lá para cá, enquanto a população branca aumentou do zero até os 170 milhões atuais, as centenas de etnias de índios tiveram seus números reduzidos a menos de 358 mil almas.

O foco agora é preparar os grupos que vivem no Xingu para um confronto cultural com os brancos em circunstâncias ainda mais complexas. As vilas fronteiriças logo se transformarão em cidades de porte médio, com atrativos bem maiores aos vizinhos índios. Como evitar que os índios não almejem adquirir eletrodomésticos e roupas de grifes, depois de se exporem à publicidade desses produtos, ou que comparem a aridez das aldeias ao conforto dos bairros elegantes das cidades?

Por enquanto, o ponto que une antigas e novas lideranças é a formação de professores índios que, além das disciplinas curriculares, possam ensinar nas escolas a língua e as tradições de seus povos. Pomenkepô, um ykpeng de 22 anos, por exemplo, tomou para si essa tarefa no posto Pavuru. Jovens de outras tribos aceitaram desafios semelhantes. Os brancos também acham que chegou a hora de os índios assumirem o comando total dos serviços de educação, saúde... enfim, de toda a infra-estrutura da reserva. No Distrito Sanitário, administrado pela Unifesp, já 60% dos 98 funcionários são índios e a previsão é chegar a 100% em cinco anos, com a implantação do curso de formação de gestores.

A transferência de obrigações, que exige dos índios competência administrativa e a habilidade de dialogar de igual para igual com os brancos, entusiasma os jovens escolarizados, mas, de certo modo, deixa perplexa toda uma geração de grandes líderes que cresceu habituada à tutela total do Estado, assegurada pela Constituição. O consenso entre essas duas bandas dos povos da selva ainda pode demorar, mas é inevitável que eles venham a assumir o controle total de seus interesses no mundo complexo e globalizado. Um desafio desse porte o índio brasileiro jamais conheceu antes.

Trajetória descendente

Os índios das Américas descendem de povos originários da Ásia e chegaram ao continente há cerca de 12 000 anos.

Estima-se que havia 10 milhões de índios no Brasil na época do descobrimento. Eles utilizariam cerca de 1 300 línguas e dialetos.

Existem hoje cerca de 358 000 índios no Brasil (0,2% da população do país), distribuídos em 215 sociedades. Estima-se que há mais de 100 000 índios fora de suas comunidades, aculturados, e pouco mais de 50 grupos ainda não contatados.

Muitas nações indígenas desapareceram vitimadas por doenças como gripe, sarampo, coqueluche, tuberculose e varíola, contraídas pela aproximação do branco. Os índios não possuíam anticorpos contra vírus e bactérias causadores desses males.

PARA SABER MAIS:

Na livraria: Xingu – Os índios e seus mitos, Orlando Villas-Boas e Cláudio Villas-Boas, Kuarup, 1990

Na Internet: www.funai.gov.br

Vi na Humauniversidade

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