Foto - Naylor Vilas Boas
Foto - Fabrice Bettex
A exemplo de diversas zonas portuárias ao redor do mundo, o Porto do Rio sofreu processos de desfuncionalização por questões tecnológicas e político-econômicas. Há três décadas busca-se alternativas de desenvolvimento para os bairros portuários, sempre mais inspiradas em modelos internacionais e menos em uma eloquente especificidade local.
A maioria dos grandes projetos feitos para a zona portuária busca a renovação urbana da área e seu desenvolvimento imobiliário, compreendendo a zona portuária como um prolongamento do Centro do Rio de Janeiro ou de outros bairros “limiares” (como laranjeiras), quiçá como uma nova “Barra”, como alguns projetos e imagens sugerem.
No ano de 2001 foi lançado o Projeto Porto do Rio, que integrava uma estratégia de reabilitação do Centro do Rio de Janeiro, baseando-se na experiência de outras metrópoles mundiais ocorridas nas décadas de 1980 e 1990 (1). Tratava-se de um plano de recuperação e revitalização que objetivava valorizar o patrimônio arquitetônico e urbano do Rio de Janeiro, encarando a área como espaço estratégico de desenvolvimento urbano. Lançou as bases do projeto atual, mesmo que involuntariamente.
As intervenções, segundo o escopo do projeto, já priorizavam a idéia de tornar a área atrativa para novos empreendimentos privados, aprimorando o sistema viário e tirando partido da paisagem e da Baía de Guanabara. Para tanto, o projeto criava diferentes pólos de intervenções a fim de promover a integração das atividades portuárias e alterar as condições de utilização e ocupação do solo naquele momento. Os projetos buscavam ainda estabelecer novos marcos espaciais e pólos funcionais.
Foto - Naylor Vilas Boas
Como este desejo de renovação se articularia aos diversos preceitos que o projeto propunha em sua formulação, ao afirmar o desejo de preservação do existente ou a importância da comunidade local considerando que a transformação da forma urbana refletiria no conjunto de relações estabelecido?
Foto - Naylor Vilas Boas
A renovação populacional que acontecerá também no Porto, se o projeto for bem sucedido, a apropriação turística ou voltada ao entretenimento decorrente, aliada a um novo perfil (skyline) e à consequente transformação da vida urbana ainda resistente na zona portuária através da transformação dos usos, na perspectiva de sucesso do plano anterior e do atual, são aspectos que desestabilizavam o discurso da preservação.
Autores como Rem Koolhaas faziam, desde o final dos anos 90, a defesa, senão apologia, da não-preservação e da re-edição da tabula rasa, a favor da mudança constante, da renovação sempre que necessário, como um dos “talentos” da condição urbana contemporânea. No entanto, estas questões permaneceram e permanecem apenas implícitas no debate da questão urbana carioca. A substituição da forma urbana portuária ou seu semi-arrasamento não tem sido suficientemente abordada, como se fosse um “tabu” debater hoje em dia o problema da forma da cidade, ou como se houvesse novo consenso sobre a altíssima escala.
Do projeto de 2001 ao projeto lançado em 2009, rebatizado “Porto Maravilha”, o processo se radicalizou. O que era comedido ou ainda indefinido no primeiro, no projeto atual é explícito: verticalização, transformação radical da paisagem urbana, altos índices de construção permitidos, semiprivatização do processo de desenvolvimento urbano local.
Se o primeiro projeto era conduzido por especialistas de longa data na questão da área portuária carioca, o de hoje parece ser conduzido por um espírito dominado pelo caráter financeiro e imobiliário do desenvolvimento da área. Em que se pese a necessária passagem do projeto ao pragmatismo da realização, o que está aqui em jogo é o método, o ritmo, os princípios estabelecidos e principalmente, a sensação de que a cidade se constrói sob os olhares surpresos, indignados ou cúmplices de sua comunidade. Há movimentação de alguns setores, mas esta ainda não ganhou a mídia nem o vulto necessário.
Área portuária, Rio de Janeiro
Foto - Naylor Vilas Boas
O atual modelo urbano contemporâneo reproduzido sem crítica ou consideração de seus efeitos na história urbana nos parece, no mínimo, arriscado. As imagens remetem a um modelo segregacionista no qual o que já se considerou como o sentido da vida urbana será paulatinamente suprimido: a diversidade, a experimentação, a singularidade, a negociação, a relação entre diferenças. Um desafiante sarcasmo toma conta da cena do debate urbano: parece que estamos de volta aos anos 70, onde a política rodoviarista acompanhada pelo bota-abaixo do Rio antigo era a tônica. Novo ou velho destino à espreita da antiga capital?
As escolhas urbanas que vemos despontar no panorama atual remetem à homogeneidade de usos, público, imagem. Nosso grande temor, é, portanto, que um projeto como o Porto Maravilha consiga de fato renovar a zona portuária: renová-la de forma totalizante. Atualmente parece ser relativamente rápido apagar quase 450 anos de camadas acumuladas de história... ou senão, reescrevê-las de forma radical. O radicalismo não é em si negativo, mas será que os cariocas estão felizes com o desaparecimento dos galpões portuários e também de casas, com o iminente bloqueio da vista dos morros, fundamentais na história do Rio de Janeiro? E os moradores da região?
E se estão, por que exatamente isto é possível em um contexto de clara relegação do contexto local em sua pluridimensionalidade? Considerar a cidade e as suas camadas constituídas no tempo é, a nosso ver, respeito e consideração de “si mesmo” e de seus laços e relações pessoais trans-históricos com um sítio físico-cultural-afetivo.
Este artigo não tem como objetivo constituir-se como trincheira contra o projeto, mas defende que uma cidade construída de forma coesa é uma cidade “duradoura”. Grandes investimentos imobiliários vêm e vão e geralmente deixam cicatrizes, por sua velocidade e incapacidade de abordar o microcosmos. São, por definição, insustentáveis na maioria dos pontos de vista, exceto aquele do lucro imediato. Mas a cidade é uma rede de microcosmos, e a violência da cidade se dá justamente quando micromundos são esquecidos e desrespeitados.
Do alto do mirante Dona Marta, ao cair da noite – me permito um momento confessional – vendo de longe o Porto do Rio, observei sua inevitável posição estratégica na cidade, numa perspectiva de hiper-adensamento da zona sul e do centro. Em uma outra cidade na qual tantos urbanistas se espelham, olhando uma situação “parecida”, alguém criou “la Défense”, um pouco mais longe do centro.
No Rio, destruiremos o Porto supostamente para fortalecer a cidade? Parece estranho se pensarmos que todo o sistema urbano em construção atualmente colabora com uma hiperpolarização da Barra, sua recentralização na cidade criando, finalmente, o novo centro que desejou Lucio Costa. A “ida” para a Barra já se deu – um novo equilíbrio deverá ser buscado. Nunca mais o Rio se repolarizará do mesmo modo: a cidade deve ser pensada com olhos que consideram sua realidade atual. Por que pensar em áreas competindo e não em naturezas distintas e singulares? Por que fazer do Porto uma espécie de lastimável Barra (ou uma Dubai em sítio histórico)? A única chance do Porto é permanecer algo único, ganhar força sendo um bairro ímpar e não mais um bairro anônimo de qualquer cidade mundial que quis se “mundializar” a fórceps.
Não creio que aquilo que mundializa ou “glorifica” é o “mesmo”, mas sim o singular, o insuspeito, o próprio, a diferença.
O apelo é para que uma apropriação urbana, estética e humana, própria, inteligente, respeitosa e duradoura, possa ainda ser pensada para o Porto.
Resta compreender o porque de a zona portuária não ter sido preservada pelo Patrimônio Histórico da cidade e do país. Lanço o apelo. Não de um tombamento de tipo “congelante”, mas de uma estratégia de proteção ativa e flexível, que saiba considerar o conjunto sem engessá-lo, que saiba fundamentar e operacionalizar sua particularidade urbana, humana, geográfica, histórica e simbólica. Ainda é tempo.
notas
NE
Este artigo retoma brevemente o debate iniciado no livro de mesma autoria: MOREIRA, Clarissa. A cidade contemporânea entre a tabula rasa e a preservação: cenários para o Porto do Rio de Janeiro. São Paulo, Unesp, 2005.
1
SIRKIS, Alfredo. Porto do Rio: usina de sonhos. In Porto do Rio. Catálogo da Exposição. Centro de Arquitetura e Urbanismo. Rio de Janeiro, 2001.
2
idem, ibidem.
sobre a autora
Clarissa Moreira é arquiteta e urbanista, Pós-doutora Faperj / Prourb-FAU / UFRJ, doutora em filosofia Universidade Paris I, Mestre em urbanismo Prourb-FAU/UFRJ.
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